A reforma tributária concentra atenções, mas novas regras para infraestrutura devem trazer investimentos para um dos setores mais fragilizados da economia
Jaboatão dos Guararapes é uma das cidades com maior relevância econômica de Pernambuco. O município, de 700.000 habitantes, gera um terço do PIB do estado. Com localização estratégica, entre Recife e o Porto de Suape, Jaboatão tornou-se um centro industrial, atraindo empresas como a Basf e a Unilever, que abriram fábricas na região.
Só tinha um problema: até pouco tempo atrás, apenas 6% da cidade estava conectada à rede de esgoto. Esse cenário começou a mudar graças a uma parceria público-privada (PPP) entre a Compesa, companhia estadual de saneamento, e a BRK Ambiental, controlada pelo fundo canadense Brookfield, assinada em 2013.
As obras de expansão devem ser concluídas até 2027. Em toda a Grande Recife foram construídos mais de 2.000 quilômetros de rede e 15 estações de tratamento de esgoto. “Cerca de 40% da população da região já está sendo atendida”, diz Ana Carolina Farias, diretora da BRK Ambiental em Pernambuco.
Até o final do ano, a empresa deve captar 1 bilhão de reais de investimento junto à Caixa Econômica para dar continuidade ao programa de saneamento da Grande Recife. Já foi investido 1,7 bilhão de reais, mediante financiamentos da Caixa, do IDB Invest (braço financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento) e do Banco do Nordeste.
Pernambuco está longe de ser o único estado que sofre com a falta de saneamento. Cerca de 100 milhões de pessoas no Brasil não contam com os serviços de coleta e tratamento de esgoto e 35% da população não tem acesso a água tratada.
O setor foi sempre problemático. Os contratos entre os municípios e as companhias estaduais de saneamento não estipulavam metas, muito menos deveres e direitos de ambas as partes. Algumas vezes, nem sequer havia um documento formalizando a prestação do serviço.
“Não era raro o contrato simplesmente vencer e ficar por isso mesmo”, diz Percy Soares Neto, diretor executivo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto. Sem incentivo a melhorias, o saneamento pouco avançou nas últimas décadas.
O novo marco regulatório, aprovado em julho, deve atrair mais capital privado para o setor, que hoje atende menos de 300 cidades brasileiras. A nova legislação define que somente as cidades com 90% de abastecimento de água e 60% de tratamento de esgoto poderão renovar contratos com as companhias estaduais.
Apenas 6% dos municípios brasileiros se enquadram nessas características. O novo marco já está valendo. A expectativa é que o mercado atraia 700 bilhões de reais até 2033.
A perspectiva de uma onda de investimentos em saneamento deve se repetir em outras áreas que estão prestes a ter revisões regulatórias. Novos marcos legais para gás, energia elétrica, ferrovias e até transporte urbano estão em discussão no Congresso.
Apesar das particularidades que regem cada setor, o que une as propostas de novas legislações é um choque de capitalismo. Mais concorrência no processo de licitação, mais transparência na gestão dos ativos e mais liberdade para o consumidor devem desembocar em mais investimentos.
“Há um potencial transformador para a qualidade de vida das famílias brasileiras e para a competitividade do país”, diz o economista Claudio Frischtak, sócio da consultoria Inter.B. Ele estima que a infraestrutura no Brasil demande investimentos de pelo menos 1,7 trilhão de reais para universalizar o acesso e prover um patamar mínimo de qualidade. O problema é que no atual ritmo de investimento, de menos de 2% do PIB ao ano, nunca chegaremos lá.
A modernização da infraestrutura é tão importante quanto outra pauta que está no centro do debate político: a reforma tributária, que deverá reduzir o custo do pagamento de impostos pelas empresas. Segundo o ministro da Economia, Paulo Guedes, a carga tributária das empresas deve cair dos atuais 34% para algo entre 25% e 30%.
Para substituir a arrecadação que seria perdida com essa redução, a ideia é taxar dividendos. A economia para as empresas pode chegar a 1,8 trilhão de reais por ano. Em um momento em que o setor produtivo patina por causa da crise do coronavírus, a mudança é mais do que desejada — e fundamental em um ambiente de negócios que deve se tornar cada vez mais livre de antigas amarras e aberto à concorrência privada.
A questão é que a reforma do governo enfrentará resistências no Congresso — há outros dois projetos de parlamentares correndo em paralelo — e pode demorar para ser aprovada. Nesse sentido, as pautas de infraestrutura tendem a trilhar um caminho mais suave.
O primeiro teste desse ambiente regulatório mais aberto ao capital privado virá em setembro, com quatro leilões de saneamento. Em Mato Grosso do Sul, o governo do estado quer universalizar a coleta e o tratamento de esgoto na próxima década, um projeto que exige investimentos de 3,8 bilhões de reais.
Em Alagoas, a concessão dos serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto da região metropolitana de Maceió deverá render investimentos de 2,6 bilhões de reais. No Espírito Santo, uma PPP deve trazer investimentos de 1,3 bilhão de reais dos serviços de saneamento na cidade de Cariacica, com população de 388.000 habitantes.
Será ainda leiloado um projeto de dessalinização no Ceará. “Vamos disputar dois projetos”, diz Renato Sucupira, presidente da BF Capital, que assessora financeiramente operações de infraestrutura.
Sucupira, que tem trabalhado com grupos nacionais e estrangeiros, estima que apenas o setor de saneamento deverá atrair 400 bilhões de reais nos próximos cinco anos. Ainda neste semestre, no Rio de Janeiro, 64 cidades, divididas em quatro blocos, também vão abrir licitação. Os municípios reúnem 13,7 milhões de habitantes.
Para um mercado que andou de lado durante décadas, é um avanço e tanto. Dezenas de fundos de investimento e empresas privadas estão de olho no setor. “O Brasil representa um mercado enorme e, agora que as regras do jogo foram definidas e criou-se um ambiente regulatório consistente, passamos a ver o setor com muito interesse”, diz Fernando Lohmann, líder de investimentos em infraestrutura do banco australiano Macquarie no Brasil.
O Santander lançou no dia 21 de julho uma linha de crédito de 5 bilhões de reais para o setor de saneamento. “Em um momento de liquidez global, com juros negativos no mundo, os projetos de infraestrutura em um país com as dimensões e necessidades do Brasil, definidos com base em um bom arcabouço regulatório, têm tudo para conquistar a atenção do investidor”, diz Sandro Marcondes, diretor de project finance e mercado de capitais do banco Santander.
Daniel Rossi, da Capitale, de São Paulo: a comercializadora de energia, que hoje vende para indústrias e varejistas, vai criar pacotes para clientes pessoa física no futuro | Leandro Fonseca
Os investidores também já começaram a se debruçar sobre as demandas e oportunidades do setor de gás natural, outro mercado que deve inaugurar um processo inédito de abertura à iniciativa privada.
O novo marco regulatório do gás deve ser votado nas próximas semanas no Senado. No final de julho, o Congresso aprovou um requerimento de urgência para que o projeto de lei seja votado o mais rápido possível, o que deve acontecer ainda neste mês. Hoje, o mercado de gás está praticamente todo nas mãos da Petrobras e de suas subsidiárias.
A iniciativa privada já demonstrou condições de participar do setor, como aconteceu no ano passado com as operações da TAG, comprada por um consórcio formado pela Engie e pelo fundo canadense Caisse de Dépôt et Placement du Québec, por 33,5 bilhões de reais. “A abertura de mercado do setor de gás faz parte de uma ampla estratégia de dar um choque de capitalismo e eficiência em setores estratégicos da infraestrutura”, disse Bento Albuquerque, ministro de Minas e Energia, em entrevista à EXAME.
O setor deve atrair cerca de 43 bilhões de reais em investimentos nos próximos anos, segundo projeções do governo. A abertura à concorrência deve baratear o preço do gás, utilizado em larga escala pela indústria. “A nova lei ajudará a reduzir o chamado custo Brasil, o que será extremamente benéfico para nossa economia”, diz Juliana Falcão, especialista em energia da Confederação Nacional da Indústria (CNI).
Segundo Falcão, a redução no preço do gás, que pode chegar a 40% dos valores atuais, deverá aumentar o patamar de investimentos da indústria nacional, que sairia de 10 bilhões de dólares por ano para 30 bilhões de dólares até 2030.
Toda a cadeia do setor deverá ser movimentada. “As projeções de investimentos indicam a necessidade de fornecedores para todo tipo de infraestrutura da indústria do gás natural”, diz o ministro Bento Albuquerque. A nova legislação está em tramitação há sete anos.
Desde então, o mercado vem se preparando para a participação da iniciativa privada no transporte de gás pelos dutos, nas unidades de processamento e nos terminais de distribuição. “Uma regulamentação mais flexível, como no caso da autorização para estocagem e gasodutos, permitirá a adaptação e o desenho de novos modelos de negócios. E eles já estão surgindo”, diz o ministro Bento Albuquerque.
Enquanto o setor de saneamento e gás experimenta a chegada mais robusta do capital privado, o de energia elétrica caminha para a abertura total. Desde 1998, grandes consumidores, como indústrias e shopping centers, podem comprar energia diretamente dos geradores, o que implica redução de até 40% no custo de aquisição.
No Senado, um projeto de lei propõe que os consumidores possam contratar o fornecedor de energia, assim como na telefonia, na qual os clientes migram de uma operadora de celular para outra. Hoje, o Brasil é um dos países com menor liberdade de contratação de energia elétrica no mundo. Um levantamento da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia com 56 países coloca o país no 55º lugar em liberdade de escolha para os consumidores de energia, perdendo apenas para a China.
A abertura do mercado permitirá o surgimento de novos negócios. A Capitale, uma das maiores comercializadoras de energia do país, pretende entrar no varejo, criando diferentes planos de consumo. “Será possível contratar com base nos hábitos do consumidor, quem usa mais eletricidade à noite do que de dia, por exemplo, ou mesmo escolher uma fonte de energia unicamente renovável”, diz Daniel Rossi, presidente da Capitale.
Isso deverá representar uma economia de 15% a 30% no custo de energia pago pelo consumidor pessoa física, que hoje representa um terço da conta de luz (custos fixos e impostos levam os outros dois terços). Como o quilowatt que chega à casa das pessoas não é carimbado, haverá um sistema de compensação entre comercializadores, distribuidores e geradores de energia.
A participação privada na infraestrutura é desigual no país. Enquanto saneamento e gás ainda dão os primeiros passos, setores como os de telecomunicações e energia elétrica estão mais maduros. Um estudo da consultoria Inter.B mostra que, à medida que a participação privada nos investimentos por setor da infraestrutura é maior, menor é a necessidade de recursos para atingir a universalização e um patamar mínimo de qualidade.
Em telecomunicações, por exemplo, no qual 99% dos investimentos em 2019 vieram do setor privado, são necessários 131 bilhões de reais para suprir as demandas. Já o setor de transporte, no qual menos da metade dos 43 bilhões de reais veio do setor privado no ano passado, precisa de cerca de 1 trilhão de reais em investimento.
Até o regime de transporte de ônibus urbanos está sob revisão. “Trata-se de um setor em que não é incomum que as empresas operem sem ter um contrato com os municípios, de um jeito muito semelhante ao que acontecia no saneamento”, diz o deputado Hildo Rocha (MDB-MA). “Além disso, é um mercado muito cartelizado.”
Rocha é relator do projeto de lei que libera 4 bilhões de reais de socorro às empresas de ônibus urbanos de cidades com mais de 200.000 habitantes. A proposta do Ministério da Economia é condicionar o acesso aos recursos à atualização da legislação.
As prefeituras terão de revisar os contratos e deixá-los em ordem, com a definição de mecanismos de transparência e auditorias nos balanços, até 2021. Os municípios que não têm contrato com as operadoras de ônibus terão de abrir licitação. Caso contrário, as empresas do setor não terão acesso ao pacote de ajuda.
As ferrovias também deverão passar por grandes mudanças. Hoje, um terço da malha ferroviária brasileira está abandonado, segundo um estudo da CNI. Em 2019, os aportes no setor foram os menores dos últimos dez anos, somando apenas 3,5 bilhões de reais. Uma série de amarras e contratos malfeitos acabou dificultando até a devolução de trechos inoperantes.
Os processos de licitação também eram morosos. Resultado: a malha brasileira é uma das mais tímidas do mundo, com apenas 30.000 quilômetros — nos Estados Unidos, são 200.000 quilômetros de trilhos. Até o final do ano, deverá ser votada a nova lei que simplifica as normas. Com ela, as empresas privadas poderão ser autorizadas a construir e operar ferrovias, sem que necessariamente haja um processo de licitação.
“Caberá ao operador fazer o estudo de viabilidade econômica e arcar com o bônus e ônus da operação, como acontece em qualquer empresa privada”, diz Diogo Mac Cord, secretário de Infraestrutura do Ministério da Economia. Se tudo der certo, será um tremendo choque de gestão em um setor que há décadas anda fora dos trilhos. Isso vale para tudo que envolva infraestrutura no Brasil hoje em dia. Tem tudo para dar certo — só falta aprovar as novas regras e deixar a bola rolar.
A perspectiva de melhora dos marcos legais para os setores de serviços públicos e transportes tem animado bastante os investidores na bolsa de valores. As companhias de energia elétrica, saneamento básico, gás e concessão de rodovias são costumeiramente procuradas como porto seguro, porque, donas de contratos com cláusulas de reajuste periódico, têm receita previsível e pagam dividendos generosos.
A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), por exemplo, dobrou de valor de mercado desde o fundo do poço da B3 em março, quando a bolsa estava tomada pelo pânico da pandemia da covid-19, porque o órgão regulador autorizou um reajuste real de 8,1% em suas tarifas a partir de 2021. Atualmente, está avaliada em 40,7 bilhões de reais.
“Com o novo marco do saneamento permitindo a privatização das empresas do setor, parece conveniente que a agência reguladora de São Paulo determine um reajuste relativamente atrativo”, escreveram em relatório a clientes os analistas do banco de investimento Bradesco BBI Francisco Navarrete, Bruno Reis e Jonny Oda. O governo paulista há anos avalia vender parte de sua fatia de 50,3% na Sabesp.
A queda da arrecadação de impostos decorrente da desaceleração econômica causada pela infecção covid-19 pode dar o empurrão definitivo para que essa decisão seja tomada. Das estatais do setor listadas na bolsa, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) foi a que menos subiu recentemente, já que é a menos provável de ser privatizada: alta de 58% em quatro meses.
Já a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa), que está na lista do governo mineiro para venda, ganhou 65% — no mesmo intervalo, o Ibovespa avançou 66%. A revisão das regras para as ferrovias também vem impulsionando a Rumo Logística, maior operadora do Brasil, que assinou no final de maio a renovação da concessão da malha paulista com a ANTT.
Agora está valendo cerca de 36 bilhões de reais — e pode chegar a 48 bilhões, um ganho de 31%, pelas contas do banco Santander Brasil. “A Rumo é a principal empresa que pode absorver futuras oportunidades em infraestrutura”, escreveram, em relatório, os analistas Pedro Bruno, Lucas Laghi e Rubén Romero.
Transportando a produção de grãos brasileira até o Porto de Santos, a Rumo tem apresentado bom desempenho, mesmo durante a atual crise, já que o agronegócio continua indo muito bem, obrigado. Em um cenário de aceleração econômica e com a regulação mais adequada, oferece uma chance para o investidor ganhar com o choque de capitalismo que se desenha.
Fonte: Revista Exame